Humanismo

O Humanismo foi um movimento filosófico e literário que ocorreu nos séculos XIV e XV, na Península Itálica. O Humanismo marcou a passagem da Idade Média para o Renascimento. Vale ressaltar que há estudiosos que nem sequer consideram que o Humanismo seja um movimento literário próprio, pois ele possui traços do Trovadorismo e do Renascimento.

1. Datas

  • 1434: nomeação de Fernão Lopes como “Cronista-Mor do Reino”, pelo rei D. Duarte de Avis — início do Humanismo em Portugal.
  • 1527: volta do poeta Sá de Miranda da Itália, trazendo as novidades renascentistas, a “Medida Nova”do Renascimento — início do Renascimento em Portugal.

2. Contexto histórico

O período denominado Humanismo, para a literatura portuguesa, estende-se de 1434 a 1527. A primeira data refere-se à nomeação de Fernão Lopes como Cronista-Mor do Reino. A escolha desse nome para o cargo reflete a nova mentalidade que se instaurava em Portugal e que fora inaugurada com a ascensão da Dinastia de Avis ao trono português, após a Revolução de Avis (1383-1385), que colocou em lados opostos a nobreza feudal, aliada à Dinastia de Borgonha, e a burguesia, que apoiava o Mestre de Avis, coroado rei em 1385.

Esta época caracterizou-se, principalmente, pelo processo de humanização da cultura, o qual correspondeu ao nascimento do mundo moderno na Europa: o mercantilismo, com o desenvolvimento do comércio; o surgimento da burguesia e o florescimento das cidades europeias, ao lado da formação das monarquias nacionais absolutistas, são alguns dos principais marcos do período, além da invenção da imprensa e do início das grandes navegações.

3. Características gerais do Humanismo

Esta é uma fase de profundas transformações sociais e políticas, com a volta do interesse humano para o próprio Homem e a nova consciência de que o conhecimento é necessário. Dessa maneira, há a valorização da inteligência humana, que leva ao processo de humanização da cultura, no qual se pode observar:

  • a identificação com a cultura clássica e com o racionalismo;
  • a transição do teocentrismo medieval para o antropocentrismo que marcaria o Renascimento;
  • uma afinidade com o espírito conquistador das viagens ultramarítimas: o homem-herói, conquistador, modificador e agente da história.

4. Principais manifestações literárias

As principais manifestações literárias do período são a poesia palaciana, a historiografia de Fernão Lopes e o teatro medieval e popular de Gil Vicente.

A Poesia da Fase Palaciana

A poesia continuou a ser cultivada durante o Humanismo, mas com algumas modificações em relação às cantigas trovadorescas, atendendo às condições do novo clima cultural. Reunida no Cancioneiro geral, de Garcia de Resende (1516), é conhecida como “poesia palaciana” e apresenta as seguintes características:

  • separação entre poesia e música;
  • busca da musicalidade através dos recursos próprios da palavra, como o ritmo e a rima, o refrão e o paralelismo;
  • substituição do trovador pelo poeta.

A Historiografia de Fernão Lopes

Considerado o “Heródoto português” e “Pai da Historiografia Medieval” em Portugal, Fernão Lopes antecipa, em sua historiografia, o conceito moderno de História, segundo o qual sem documentos não se faz a história. Assim, sua obra apresenta caráter documental e marca-se pelo compromisso com a verdade, com a pesquisa de documentos dos arquivos da Torre do Tombo, igrejas etc. É escrita em linguagem sóbria, elegante, e utiliza recursos próprios da literatura, como diálogos, retratos psicológicos das personagens históricas, o que permite enquadrar seu estilo como literário.

Fernão Lopes foi nomeado “Cronista-Mor do Reino” e recebeu a missão de escrever o reinado de cada rei de Portugal, mas de tudo o que deixou restam apenas três crônicas: a Crônica d’El Rei D. Pedro, a Crônica d’El Rei D. Fernando e a Crônica d’El Rei D. João I (1a. e 2a. partes).

Abaixo, um fragmento da Crônica d’El Rei D. Pedro; o significado das expressões em destaque encontra-se a seguir.

“A Portugal foram trazidos Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, e chegaram a Santarém, onde El-Rei Dom Pedro era; e El-Rei, com prazer da sua vinda, porém mal magoado porque Diego Lopes fugira, os saiu fora a receber, e sanha cruel sem piedade lhos fez per sua mão meter a tormento, querendo que lhe confessassem quais foram na morte de Dona Inês culpados, e que era que o seu padre tratava contra ele quando andavam desavindos por azo da morte dela; e nenhum deles respondeu a tais perguntas cousa que a El-Rei prouvesse; e El-Rei com queixume dizem que deu um açoute no rosto a Pero Coelho, e ele se soltou então contra El-Rei em desonestas e feias palavras, chamando-lhe traidor, fé perjuro, algoz e carniceiro dos homens; e El-Rei, dizendo que lhe trouxessem cebola e vinagre pera o coelho, enfadou-se deles e mandou-os matar.

A maneira de sua morte, sendo dita pelo miúdo, seria mui estranha e crua de contar, ca mandou tirar o coração pelos peitos a Pero Coelho, e a Álvaro Gonçalves pelas espáduas; e quais palavras houve, e aquele que lho tirava, que tal ofício havia pouco em costume, seria bem dorida cousa d´ouvir; enfim mandou-os queimar; e tudo feito ante os paços onde ele pousava, de guisa que comendo olhava quanto mandava fazer.”

Fernão Lopes, Crônica d’El-Rei Dom Pedro

  • era: estava
  • sanha: fúria, rancor, ódio
  • per: por
  • padre: pai
  • desavindos: brigados
  • por azo: por causa
  • prouvesse: satisfizesse
  • açoute: açoite, chibatada, chicotada
  • fé perjuro: traidor da fé, sem palavra
  • pera: para
  • pelo miúdo: pelo povo
  • mui: muito
  • ca: pois
  • dorida: dolorida
  • cousa: coisa
  • paços: lugares
  • pousava: estava
  • de guisa que: de modo que

Gil Vicente

Antes de Gil Vicente, praticamente não havia teatro em Portugal, pois não existia, nas encenações, unidade entre o texto e a representação: o que se fazia era apenas um teatro rudimentar, ligado às tradições da igreja e encenado nas comemorações religiosas, como os mistérios, moralidades e milagres e os momos, arremedilhos e pantomimas do teatro profano.

Em 1502, Gil Vicente vai saudar o nascimento do futuro rei D. João III, filho de D. Manuel e de D. Maria de Castela, e encena o “Monólogo de Vaqueiro” ou “Auto da Visitação, peça que passa a ser considerada o marco inicial do teatro português. No Natal do mesmo ano, a representação do “Auto Pastoril Castelhano” confirma seu sucesso e ele passa a viver na Corte, às custas do rei, incumbido de escrever, produzir e encenar seu teatro. Inicia-se verdadeiramente o teatro português e o texto passa então a predominar sobre o cenário e a representação.

Gil Vicente escreveu de 1502 a 1536, portanto, entre o final do Humanismo e o início do Renascimento em Portugal.

No entanto, seu teatro é medieval e teocêntrico, criticando o mundo renascentista e o utilitarismo burguês de sua época. Ao longo desses trinta e quatro anos, sua produção teatral conheceu três fases: a primeira, de iniciação literária, com forte influência de Juan del Encina, dramaturgo espanhol; a segunda, de crítica social, em linguagem mordaz, irônica, agressiva e ataques à sociedade como um todo e a terceira, que corresponde à sua maturidade intelectual, com grande domínio da linguagem e continuação da crítica social, mas com intenção moralizante.

Pertencem à terceira fase as suas obras-primas, como “A farra de Inês Pereira”, “Auto da Barca do Inferno”, “Auto da Barca do Purgatório”, “Auto da Barca da Glória”, “Auto da Lusitânia”, “O Velho da Horta”, “A Farsa de Inês Pereira”, “O Juiz da Beira” etc.

As características mais importantes do teatro vicentino são o sentido alegórico-crítico, o predomínio do texto sobre a encenação e o espetáculo propriamente dito e a quebra da unidade de tempo, espaço e ação, característica do teatro clássico. Os temas dividem-se em religiosos e de atualidade.

Apresenta ainda como qualidades a densidade lírica, o combate social, a criação de tipos representativos da sociedade e a investigação do destino humano. É um teatro rudimentar, baseado no improviso e na espontaneidade.

A seguir, um fragmento de uma de suas obras-primas, o “Auto da Barca do Inferno”:

Fidalgo: Esta barca onde vai ora,
que assi está apercebida?
Diabo: Vai pera a ilha perdida
e há de partir logo essa hora.
Fidalgo: Pera lá vai a senhora?
Diabo: Senhor, a vosso serviço.
Fidalgo: Parece-me isso cortiço.
Diabo: Porque a vedes lá de fora.
Fidalgo: Porém, a que terra passais?
Diabo: Pera o inferno, senhor.
Fidalgo: Terra é bem sem sabor.
Diabo: Quê? e também cá zombais?
Fidalgo: E passageiros achais
pera tal habitação?
Diabo: Vejo-vos eu em feição
pera ir ao nosso cais...
Fidalgo: Parece-te a ti assi...
Diabo: Em que esperas ter guarida?
Fidalgo: Que leixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
Diabo: Quem reze sempre por ti?!...
Hi hi hi hi hi hi hi hi...
E tu viveste a teu prazer
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?!
Embarcai, hou! Embarcai!,
que haveis de ir à derradeira...
Mandai meter a cadeira,
que assi passou vosso pai.
Fidalgo: Quê? quê? quê? Assi lhe vai?!
Diabo: Vai ou vem, embarcai prestes!
Segundo lá escolhestes,
assi cá vos contentai.
Pois que já a morte passastes,
haveis de passar o rio.
Fidalgo: Não há aqui outro navio?
Diabo: Não, senhor, que este fretastes,
e primeiro que expirastes,
me destes logo sinal.
Fidalgo: Que sinal foi esse tal?
Diabo: Do que vós vos contentastes.
Fidalgo: A estoutra barca me vou.
— Hou da barca, para onde is?
Ah, barqueiros!, não me ouvis?
Respondei-me! Houlá! Hou!...
— Par Deus! Aviado estou!
Quant’a isso é já pior.
Que giricocins, salvanor!
Cuidam que sou eu grou?
Anjo: Que quereis?
Fidalgo: Que me digais,
pois parti tão sem aviso,
se a barca do paraíso
é esta em que navegais.
Anjo: Esta é; que demandais?
Fidalgo: Que me deixeis embarcar;
sou fidalgo de solar,
é bem que me recolhais.
Anjo: Não se embarca tirania
neste batel divinal.
Fidalgo: Não sei porque haveis por mal
que entre a minha senhoria.
Anjo: Pera vossa fantasia
mui estreita é esta barca.

Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno

Sumário

- Humanismo
i. Datas
ii. Contexto histórico
iii. Características gerais do Humanismo
iv. Principais manifestações literárias
- Gil Vicente

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