Texto narrativo

O texto narrativo é caracterizado por narrar uma história por meio de uma sequência de ações reais ou imaginárias. Geralmente, o texto narrativo é escrito em prosa. Alguns exemplos de textos narrativos são o romance, a novela, o conto, a crônica e a fábula.

Narrar é o mesmo que contar, relatar, informar acontecimentos. Eis aí o papel da narrativa, visto de forma geral, não teórica, não no plano literário. Deste modo, essa proposta é meramente didática, para que possa o estudante perceber a natureza da modalidade narrativa.

Normalmente, um romance, um conto, uma novela (textos pertencentes à prosa literária) são narrativas. Todavia, há narrativas em verso, por exemplo, a bela narrativa épica de Camões, Os Lusíadas.

Texto narrativo

A feitura do texto narrativo baseia-se em dois polos: o do acontecimento real, verdadeiro, conhecido e o do inventado, gerado na mente do escritor. Claro que o relato de uma viagem de férias ao planeta Marte pertence à invenção narrativa. Por outro lado, o texto que narra uma obra científica, um livro de História, uma notícia de jornal incluem-se na área da narrativa real:

“Por volta do século XII, com a desintegração do feudalismo, começa a surgir um novo sistema econômico, social e político: o capitalismo. A característica essencial do novo sistema é o fato de, nele, o trabalho ser assalariado e não servil, como no feudalismo. Outros elementos típicos do capitalismo: economia de mercado, trocas monetárias, grandes empresas e preocupação com o lucro.

O capitalismo nasce da crise do sistema feudal e cresce com o desenvolvimento comercial, depois das Primeiras Cruzadas. Foi se formando aos poucos, durante o período final da Idade Média, para finalmente dominar toda a Europa Ocidental, a partir do século XVI. Mas foi somente depois da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII na Inglaterra, que se estabeleceu o verdadeiro capitalismo.”

ARRUDA. José Jobson de, História Moderna e Contemporânea.

A narrativa de ficção apresenta uma proposta do possível de acontecer, imaginado pela criatividade do artista. Esse tipo de texto carece da verossimilhança: elemento da composição capaz de angariar a conivência do leitor para a possibilidade de ser factível o texto.

A narração é a modalidade de texto que relata fatos, acontecimentos que se desenvolvem dentro de um período de tempo. Por isto, toda narração conta algo que tem um momento inicial, um período de evolução e um processo de finalização. Há, nesse tipo de texto, uma “voz” que conversa com o leitor. Essa voz chama-se narrador. É o narrador que nos faz saber os acontecimentos trazidos no texto narrativo. Há também seres que executam ações. São as personagens.

Um narrador (aquele que conversa com o leitor) pode (ou não) fazer parte de seu relato. Leia os textos seguintes, para notar essa afirmação:

Texto 1

Anúncio de João Alves

Figura o anúncio no jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

À procura de uma besta

   A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.
   Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sidos falhas as indagações.
   Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.
Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.

(a) João Alves Júnior

 

55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado,repousas suavemente no pequeno cemitério do Itambé. Mas teu anúncio continua modelo no gênero, senão para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à 'Cidade de Itabira'. Antes, procedestes a indagações. Falharam. Formulaste depois o raciocínio; houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.

Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo ´de todos os membros locomotores´. Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com a segurança a um jumento.

Por ser 'muito domiciliada nas cercanias deste comércio', isto é, povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes fora roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório:  ´tudo me induz a esse cálculo´. Revelas a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente - deixando de lado outras excelências de tua prosa útil - a declaração positiva: quem a aprender ou pelo menos 'notícia exata ministrar', será 'razoavelmente remunerado'. Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas como o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, este amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida".

(Carlos Drummond de Andrade, Fala, amendoeira)

Texto 2

O mestre de primeiras letras

   Unamos agora os pés de demos um salto por cima da escola, a enfadonha escola, onde aprendi a ler, escrever, contar, dar cacholetas, apanhá-las, e ir fazer diabruras, ora nos morros, ora nas praias, onde quer que fosse propício a ociosos.
   Tinha amarguras esse tempo; tinha os ralhos, os castigos, as lições árduas e longas, e pouco mais, mui pouco e mui leve. Só era pesada a palmatória, e ainda assim... Ó palmatória, terror dos meus dias pueris, tu que foste o "compelle intrare" com que um velho mestre, ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que ele sabia, benta palmatória, tão preguejada dos modernos, quem me dera ter ficado sob o teu jugo, com a minha alma imberbe, a minhas ignorâncias, e o meu espadim, aquele espadim de 1814, tão superior à espada de Napoleão!
   Que querias tu, afinal, meu velho mestre de primeiras letras? Lição de cor e compostura na aula; nada mais, nada menos do que quer a vida, que é das últimas letras; com a diferença que tu, se me metias medo, nunca me meteste zanga.
Vejo-te ainda agora entrar na sala, com as tuas chinelas de couro branco, capote, lenço na mão, calva à mostra, barba rapada; vejo-te sentar, bufar, grunhir, absorver uma pitada inicial, e chamar-nos depois à lição.
   E fizeste isto durante vinte e três anos, calado, obscuro, pontual, metido numa casinha da rua do Piolho, sem enfadar o mundo com a tua mediocridade, até que um dia deste o grande mergulho nas trevas, e ninguém te chorou, salvo um preto velho — ninguém, nem eu que te devo os rudimentos da escrita.
   Chamava-se Ludgero o mestre; quero escrever-lhe o nome todo nesta página: Ludgero Barata — um nome funesto, que servia aos meninos de eterno mote a chufas.

(Machado de Assis- Memórias póstumas de Brás Cubas)

Texto 3

O sertanejo

   O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
   A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
   É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
   É o homem permanentemente fatigado.
   Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
   Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
   Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

(Euclides da Cunha, Os sertões)

Note o seguinte: no último texto, de Euclides da Cunha, há um narrador que não se inclui no relato; ele fala como se estivesse observando, de fora. O que relata não ocorre com ele próprio, mas com o sertanejo.

Os elementos de uma narrativa

Ação é movimento. Uma narrativa não é estática, já que os episódios se sucedem, os processos verbais são nocionais (verbos de ação). Os verbos expressam a "vida vivida" pelas personagens e isto constitui o que os teóricos chamam de ação na narrativa.

Repare que, para que haja ação, não basta uma sequência de episódios. É necessário encadeamento lógico entre esses fatos e esse encadeamento produz um conjunto de fatos vinculados a um mesmo propósito. A ação é produto das atitudes da personagem: sujeito dos processos narrados.

Leia o texto seguinte e retire dele alguns processos que marcam as ações.

Texto

"Uma vela para Dario"

Dario vinha apressado, o guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Foi escorregando por ela, de costas, sentou-se na calçada, ainda úmida da chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouviu resposta. Um senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer algum ataque.

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada. E o cachimbo tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se afastasse e o deixasse respirar. E abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

Cada pessoa que chegava se punha na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram acordadas e vieram de pijama às janelas. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via o guarda-chuva ou o cachimbo ao lado dele.

Uma velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo transportou-o na direção do táxi estacionado na esquina. Haviam introduzido no carro metade do corpo, quando o motorista protestou: se ele finasse na viagem? Concordaram em chamar a ambulância. Dario foi conduzido de volta e recostado à parede — não tinha os sapatos e ao alfinete de pérola na gravata.

Alguém informou que na outra rua existia uma farmácia. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia era no fim do quarteirão e, além do mais, ele estava muito pesado. Foi largado ali na porta de uma peixaria. Imediatamente um enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse o menor gesto para espantá-las.

As mesas de um café próximo foram ocupadas pelas pessoas que tinham vindo apreciar o incidente e , agora, comendo e bebendo, gozavam as delícias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os documentos. Vários objetos foram retirados dos seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo seu nome, idade, cor dos olhos, sinais de nascença, mas o endereço na carteira era de outra cidade.

Registrou-se tumulto na massa de mais de duzentos curiosos, que a essa hora, ocupava toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu contra a multidão e várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava apenas a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio — quando vivo — não podia retirar do dedo senão umedecendo-a com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

A última boca repetiu: — "Ele morreu, ele morreu", e então a gente começou a se dispersar. Dario havia levado quase duas horas para morrer e ninguém acreditara que estivesse no fim. Agora, os que podiam olhá-lo, viam que tinha todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde as bolhas de espuma haviam desaparecido. Era apenas um homem morto e a multidão se espalhou rapidamente, as mesas do café voltaram a ficar vazias. Demoravam-se nas janelas alguns moradores, que haviam trazido almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas de chuva, que voltava a cair.

(Dalton Trevisan)

Resposta:

"...vinha apressado..."; "...dobrou a esquina..."; "...diminuiu o passo..."; "...rodearam-no..."; "...reclinou-se..."; "...Uma velhinha de cabeça grisalha gritou..." etc.

Espaço na narrativa

Observe como o romancista Graciliano Ramos inicia seu apreciado livro "Vidas Secas"

Texto

Mudança

   Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
   Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, e espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
   Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou no chão.
    — Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
   Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
   A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.
   — Anda, excomungado.
   O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário  — e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
   Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
   Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a sinha Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
   E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.

A vida de Fabiano e seus acompanhantes passa a tomar forma a partir do espaço que eles ocupam. Daí a importância da construção de um espaço adequado ao fio da narrativa. Na obra de Graciliano, o espaço, aliado ao tempo, é fator preponderante para a situação desgraçada que vivem as personagens.

Tempo na narrativa

Leia o texto seguinte, atentando para a questão do tempo em que os fatos ocorrem.

   Galo de briga com a vista vazada morre da banda cega. Todas as desgraças passam a chegar-lhe do lado escuro; o adversário mal percebe a fraqueza do outro, descruza e cruza de novo o pescoço, e batoqueia e esporeia sem só nem piedade, na nova e vantajosa posição. O mesmo aconteceu com o boi curraleiro, neste caso verdadeiro passado em noite de lua, na fazendo do Boi Solto. Com a diferença de que a vantagem não levou o outro marruco brigão, e sim uma cobra sucuri.
   Escondida no fundo da lagoa, rabo engatado na raiz, a cobra tocaia o boi carreiro. De fora da água, só a cabeça chata, escura e parada que nem toco de pau boiante e bem disfarçado na touceira de santa-luzia. Não era de agora que vinha vigiando a rês: já percebera o defeito na vista do infeliz  — proeza de somenos para uma sucuri que se preza  —medira o seu tamanho e se alegrara com a magreza dele. Menos carne, mas, em compensação, menos trabalho.
   Enchera-se de sal o cocho  —  outra notícia boa, sinal de que o boi viria beber água na lagoa a noite inteira. E foi o que aconteceu.
   Da primeira vez, o curraleiro chegou acompanhado; da segunda, sozinho, mas ainda meio ressabiado; da terceira, demorou-se um pouco. Mas da quarta-lua quase a prumo, alumiando que dava gosto  - veio confiado e entrou no barro até o meio da canela.
   A sucuri mergulhou macia, tão sonsa que nem meia borbolha se abriu no espelho azul-escuro do lagoão, rente ao barro do fundo, veio vindo, veio vindo, sempre do lado cego do boi, até o ponto certo do bote. E adeus, boi vermelho-churriado, boi de guia sestroso, carreiro de estimação!
   Um olho só, mas o suficiente para ver a morte na tromba pendurada das fuças. Memória de boi, mas memória que guardava muita história parecida, comentada em hora de serviço nas sonolentas estradas de carro, ou em hora de descanso, à lua e ao redor do cocho. Certeza certa do pior dos destinos: acabar em boca de sucuri... boca em ventosa  — chupão maldito que nada amortece, a que nada resiste, vindo das profundas de cinquenta palmos de esfomeação.
    Mas boi curraleiro tem tradição de valente. Antes que de todo lhe falte o ar — quase tudo o que entra pela boca a sucuri vai chupando pelas ventas — ele reage. Abaixa a cabeça e tenta firmar o pescoço da cobra no barro mole, pisando-o com os cascos das mãos para forçar um repuxão salvador. Mas o corpo da sucuri escorrega que nem quiabo, molgueia que nem borracha, estica que nem visgo de leite de mangaba...
   Então o boi se lembra dos seus tempos de carreiro, das toras que puxou, da disposição e da saúde que o promoveram a boi de guia de doze juntas respeitadas. Pinheiro de chifre, foi fácil cangar nas aspas, num golpe feliz, o corpo da sucuri, virar nos pés, e despejar pasto acima. Mas aí é que entra na história o tal gancho que a cobra tem na ponta do rabo. Nó cego arrochado na raiz de um pau, a maldita deixa que o boi corra, a galope. Quantas braças — cinco, dez, vinte... — quantas ele queira. Os cinquenta palmos de laço viram cem, o canudo de dois palmos de roda fica da grossura de um dedo, esticado como corda de viola. Bicho excomungado! E o boi desvira, que não aguenta mais o ajoujo que lhe entorta o pescoço e começa a desgrudar do osso da boca o couro do focinho. Mas não se entrega: finca os quatro cascos no chão, entesa as pernas, joga todo o peso no traseiro. Empaca.
   A sucuri não se afoba. Grossa de dois palmos ou fina de um dedo só, continua sucuri do mesmo jeito - natureza dela... O nó em redor da raiz, no fundo da lagoa, mais acochado ficou, e aquilo de espicha-e-encolhe são artes já treinadas e que nenhum sofrimento lhe dão. Ao outro sim, que o ar rareia nos bofes e o sangue escorre dos beiços rasgados - e a vontade fraqueja, e a força não lhe obedece mais.
   Coitado... Lá vem ele: os cascos rasgando o chão, que nem, bico de arado. A sucuri diminui de comprido e vai aumentando de grosso. Só na beira da lagoa é que ela bambeia o laço e afrouxa o esticão. Mas tudo não passa de maldoso fingimento. O boi respira e destonteia, e recua outra vez. Mas a história é a mesma — o boi empaca, a sucuri volta a arrastar o boi...
   Esmoído de canseira, um bagaço, o curraleiro arrias as cargas. Uma, duas, dez vezes a mesma agonia - espicha, encolhe, puxa, repuxa, arrocha, desarrocha. Adianta mesmo mais não.
   Então é que o pobre boi de carro perde o respeito. Chora. Buezão desta grossura, choro triste, a coisa mais triste mesmo, de todas as desgraças deste mundo.

Mário Palmério, Vila dos Confins

A relação entre espaço e tempo constitui um dado importante na estrutura da narrativa e convergem para habilitar o processo da ação das personagens. Assim, é possível ver-se que todos os constituintes dessa composição têm sua importância particular e formam a importância do todo. Leia muitos textos narrativos, preferencialmente dos bons autores brasileiros e note sempre os elementos constituintes de tal modalidade. Você apreciará muito mais a leitura.

A seguir, apresentamos-lhe um texto para que você o aprecie. Atente para a evolução do tempo em que se sucedem os fatos narrados.

   "...O outro mudava de cores, recuava trôpego, a língua presa, quase a chorar, numa aflição de culpado, o olhar azul submisso refletindo a imagem do negro:
- Me largue, repetiu. Eu lhe peço: me largue!
   Transeuntes olhavam-nos de banda e voltavam-se para os ver naquela posição, rosto a rosto, juntinhos, agarrados misteriosamente. Porque Bom-Crioulo não falava alto, que todos ouvissem, não dava escândalo, não fazia alarme: sua voz era um rugido cavernoso e histérico, um regougo abafado, longínquo e profundo.
   - Grita, anda, grita pela vaca da Carolina!
   - Me solte! continuou o efebo trêmulo, acovardado: Me largue!
   - Não te largo, não, coisa ruim, não te largo, não! Bom-Crioulo, este que aqui está, não é o que tu pensas...
   - Mas eu não fiz nada! Me solta que é tarde!
   Os olhos do negro tinham uma expressão feroz e amargurada, muito rubros, cruzando-se, às vezes, num estrabismo nervoso de alucinado.
    Um sujeito parou defronte, a olhá-los; vieram depois outras pessoas, outros curiosos; um marinheiro da Capitania, um italiano carregado de flandres, um guarda municipal, crianças, mulheres...
    Houve logo um fecha-fecha, um tumulto, um alvoroço. Trilaram apitos; vozes gritavam - rolo! rolo! e a multidão crescia no meio da rua, procurando lugar, empurrando, abrindo caminho, precipitando-se, formando um grande círculo de gentes ao redor dos dois marinheiros, invisíveis agora.
   Os bondes paravam. Senhoras vinham à janela, compondo os cabelos, numa ânsia de novidade. Latiam cães. Um movimento cheio de rumores, uma balbúrdia! Circulavam boatos aterradores, notícias vagas, incompletas. Inventavam-se histórias de assassinato, de cabeça quebrada, de sangue. Cada olhar, cada fisionomia era uma interrogação. Chegavam soldados, marinheiros, policiais. Fechavam-se portas com estrondo.
   Alguma cousa extraordinária tinha havido porque, de repente, o povo recuou, abrindo passagem num atropelo.
   - Abre! abre! diziam soldados erguendo o rifle.
    De cima das casas, mãos apontavam para baixo.
    E D. Carolina também chegara à janela com a vozeria, com o barulho, viu, entre duas filas de curiosos, o grumete ensanguentado...
    - Jesus! Meu Deus!
   Uma nuvem escureceu-lhe a vista, correu um frio pelo corpo, e toda ela tremia horrorizada, branca, imóvel.
    Muitas vistas dirigiram-se para o sobradinho.
    Aleixo passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a cabeça pendida para trás, roxo, os olhos imóveis, a boca entreaberta. O azul escuro da camisa e a calça branca tinham grandes nódoas vermelhas. O pescoço estava envolvido num chumaço de panos. Os braços caiam-lhe, sem vida, inertes, bambos, numa frouxidão de membros mutilados.

(CAMINHA. Adolfo, Bom-Crioulo.)

A técnica narrativa trabalha, pelo menos, dois processos temporais: o tempo cronológico e o tempo psicológico.

Tempo cronológico: É a marcação dos episódios dentro do cronos, ou seja, indica o ano, o dia, mês ou hora, em conformidade com o calendário. O tempo cronológico é real, é consonante com a percepção de duração do leitor. Machado de Assis traz em suas obras belos exemplos da exploração do tempo cronológico, como se pode observar no fragmento de Memorial de Aires:

“Ora bem, faz hoje um ano que voltei definitivamente da Europa. O que me lembrou esta data foi, estando a beber café, o pregão de um vendedor de vassouras e espanadores: “Vai vassouras! Vai espanadores!”. Costumo ouvi-lo outras manhãs, mas desta vez trouxe-me à memória o dia do desembarque, quando cheguei aposentado à minha terra, ao meu Catete, à minha língua. Era o mesmo que ouvi há um ano, em 1887, e talvez fosse a mesma boca.”

Tempo psicológico: Marca uma pulsação interna da personagem. É uma duração subjetiva, que flui no decurso temporal, no interior da personagem. É uma sensação do tempo que flui com maior ou menor duração:

“Pelo quarto parecia-lhe estarem a se cruzar os elétricos, a estremecerem-lhe a imagem refletida. Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos, os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tarde. Os olhos não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá fora, duma janela mais alta, caiu à rua uma cousa pesada e fofa. Se os miúdos e o marido estivessem à casa, já lhe viria a ideia de que seria descuido deles. Os olhos não se despregavam da imagem, o pente trabalhava meditativo, o roupão aberto deixava aparecerem nos espelhos os seios entrecortados de várias raparigas.

“A Noite!”, gritou o jornaleiro ao vento brando da Rua do Riachuelo, e alguma cousa arrepiou-se pressagiada. Jogou o pente à penteadeira, cantou absorta: “quem viu o par-dalzito... passou pela janela... voou p’ralém do Mi-nho!” — mas, colérica, fechou-se dura como um leque.

Deitou-se, abanava-se impaciente com um jornal a farfalhar no quarto. Pegou o lenço, aspirava-o a comprimir o bordado áspero com os dedos avermelhados. Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir.” (...)

LISPECTOR. Clarice, Devaneio e embriaguez duma rapariga.

Sumário

- Os elementos de uma narrativa
i. Espaço na narrativa
ii. Tempo na narrativa

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